Cultura empresarial em relação ao acidente do trabalho

Notas sobre a prevenção e a indenização

money-1632055_1280Nos casos de acidente típico e de doença ocupacional a culpa patronal se caracteriza tanto pelo descumprimento das normas de higiene, medicina e segurança do trabalho quanto pelo descumprimento do dever geral de cautela. Este se subdivide em prevenção e precaução.

O dever de prevenção encontra-se expresso em Norma Regulamentadora com força normativa. Trata-se da NR 01.7: “Cabe ao empregador: I – prevenir atos inseguros no desempenho do trabalho”.

Já o dever de precaução encontra-se consolidado e erigido no Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro, Eco-Rio 1992, Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Assim, presente o perigo de dano grave ou irreversível, a atividade ou substância deverá ser evitada ou rigorosamente controlada; em caso de dúvida ou incerteza, também se deve agir prevenindo.

Interessante é a distinção doutrinária entre o princípio da prevenção e o princípio da precaução. No primeiro, previne-se porque há certeza do dano e conhecimento científico das conseqüências maléficas. Na precaução, previne-se porque não se sabe quais são as conseqüências maléficas da substância ou do empreendimento; assim por haver temerosa incerteza científica é que deve existir a cautela.

O princípio da precaução é amplamente aceito no âmbito científico e deve ser aplicado aos empregadores em relação ao meio ambiente de trabalho, máxime pela exegese do art. 225 da Carta Constitucional que assegura a todo cidadão o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, aqui incluído o meio ambiente do trabalho (art. 200, VIII, da CF).

Ambos os princípios (prevenção e precaução) decorrem do dever geral de cautela que se espera do empregador quando se trata de saúde do trabalhador; um comportamento diligente que deve exceder aquele praticado pelo homem-médio, máxime porque a observância do cumprimento da legislação e do dever de prevenção constituem obrigações previstas em leis:

“A constatação de culpa resulta de um processo comparativo do comportamento do empregador que acarretou o infortúnio, com a conduta esperada de uma empresa que zela adequadamente pela segurança e saúde do trabalhador. É importante assinalar que a conduta exigida do empregador vai além daquela esperada do homem médio nos atos da vida civil (bonus pater famílias), uma vez que a empresa tem o dever legal de adotar as medidas preventivas cabíveis para afastar os riscos inerentes ao trabalho, aplicando os conhecimentos técnicos até então disponíveis para eliminar as possibilidades de acidentes ou doenças ocupacionais. (…)” (TRT, 3ª. R. Proc 01349-2004-037-03-00-0-RO – Sebastião G. de Oliveira, DJ/MG: 22/9/2005).

Observa-se que tanto a precaução quanto a prevenção de infortúnios no trabalho encerram valor jurídico muito maior que a mera reparação pecuniária do dano, vez que o respeito à dignidade do trabalhador pressupõe a preservação de sua saúde física, mental e emocional.

Com efeito, quando a empresa constitui sua atividade econômica e dela retira lucro com a participação direta do serviço prestado por seus empregados, passa também a ter o dever de assegurar a integral incolumidade física, moral e mental dos seus colaboradores partícipes. Não se perca de vista a parêmia de quem detém o bônus, tem também o ônus (ubi emolumentum, ibi onus).

Sebastião Geraldo de Oliveira faz interessante observação acerca da conveniência estratégica dos empresários que devem observar a legislação a fim de evitar expressivas indenizações judiciais e até mesmo inquinar a imagem institucional da empresa:

“Enquanto a norma praticamente se limitava a conclamar o sentimento humanitário dos empresários, pouco resultado foi obtido; agora, quando o peso das indenizações assusta e até intimida, muitos estão procurando cumprir a lei, adotando políticas preventivas, nem sempre por convicção, mas até mesmo por conveniência estratégica. Gostando ou não do assunto, concordando ou discordando da amplitude da proteção, o certo é que o empresário contemporâneo, com vistas à sobrevivência econômica no século XXI, terá de levar em conta as normas a respeito da saúde no ambiente de trabalho e a proteção à integridade física e mental dos seus empregados” (1).

O douto jurista mineiro escreveu esse texto em julho de 2005, poucos meses após a publicação da EC n. 45. Hoje, passado alguns anos em que a competência para julgar a ação acidentária deslocou-se da Justiça Comum para a Justiça do Trabalho(2), o que se verifica, infelizmente, é uma sensível diminuição dos valores fixados e arbitrados para a indenização acidentária.

Boa parte dos juízes do trabalho vem demonstrando preocupação excessiva com os cofres da empresa em detrimento da fixação de uma indenização plena e legalmente devida ao acidentado. Em razão disso, a interpretação da norma acidentária é flexibilizada em prol do agente causador do dano, o que representa uma nítida subversão dos valores jurídicos; um golpe ao princípio da dignidade da pessoa humana; uma deformação da interpretação conforme à Constituição da República!

Sobre o tema Carlos Pianovski Ruzyk bem acentua: “A fixação do quantum indenizatório é um dos momentos em que a responsabilidade civil pode atuar como instrumento para efetivação do princípio da dignidade humana, na hipótese de dano à dignidade da pessoa produzido por conta do exercício de atividade econômica. Todo e qualquer benefício econômico que o agente tenha obtido com a produção do dano, seja pelo fato de não expender recursos para preveni-lo (ato omissivo), seja por ter sofrido um efetivo acréscimo patrimonial pelo exercício da atividade danosa (ato comissivo), deve ser acrescido ao cômputo da indenização” (3).

A fim de ratificar essa inferência, basta comparar os valores indenizatórios até então fixados pela Justiça Comum Estadual com as indenizações pífias doravante estabelecidas por boa parcela do Judiciário Trabalhista.

Não se ignore que essa postura de condescendência (de boa parte) da judicatura trabalhista acaba por desestimular a empresa ao cumprimento rigoroso da legislação infortunística, por já saber, de antemão, que o valor da condenação judicial será mitigado. Tal fato, ainda que por via oblíqua, acaba fomentando os dados estatísticos acidentários que coloca o Brasil como detentor do infausto título de recordista mundial.

Contudo, ainda assim é possível vislumbrar pelo menos três vantagens para a vítima do acidente em razão desse deslocamento de competência para a Justiça do Trabalho: a especialidade desse ramo do Judiciário, a celeridade do trâmite  e a dispensa de pagamento antecipado das custas processuais (5).

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1- OLIVEIRA, Sebastião Geraldo. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional. São Paulo: LTr, 2005, pág. 202.
2- Esse deslocamento de competência jurisdicional ocorreu a partir da Emenda Constitucional n. 45 em vigor a partir de 1 de janeiro de 2005, mormente pela aplicação do art. 114, VI, da CF.
3- RUZIK, Carlos Eduardo Pianovski. A responsabilidade civil por danos produzidos no curso de atividade econômica e a tutela da dignidade da pessoa humana: o critério do dano ineficiente. In: Diálogos sobre Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pág. 142.
4- No cível o juiz sequer designa data para prolação da sentença (o que é um acinte ao princípio constitucional da razoável duração do processo, previsto no art. 5º. LXXVIII, da CF).
5- Haverá gratuidade das custas sempre que o Reclamante obtiver êxito na Ação Trabalhista. Em sendo improcedente a ação, com a rejeição in totum dos pedidos, o Autor será condenado ao pagamento das custas processuais, após o trânsito em julgado da decisão, na forma do art. 789, II, da CLT.

 

José Affonso Dallegrave Neto Mestre e Doutor em Direito pela UFPR; advogado membro do IAB – Instituto dos Advogados Brasileiros